terça-feira, 10 de agosto de 2010

O sacramento da caneca (Semana do Estudante 02)

Há uma caneca de alumínio. Daquele antigo, bom e brilhante. O cabo já está partido, mas dá-lhe um ar de antiguidade. Nela já beberam os 11 filhos, desde pequenos a grandes. Ela acompanhou a família nas muitas mudanças que fez. Da aldeia para a vila, da vila para a cidade. Houve nascimentos. Houve mortos. Ela participou de tudo. Andou sempre conosco. É a continuidade do mistério da vida na diferença das situações vitais e mortais. Ela permanece. Sempre brilhante e antiga, Creio que quando entrou em casa já devia ser velha. Velhice que é juventude porque gera e dá vida. Peça central da cozinha.
Sempre que se bebe nela não se bebe água. Mas o frescor, a doçura, a familiaridade, a história familiar, a reminiscência da criança sôfrega que sacia a sede. Pode ser qualquer água. Nesta caneca, ela é sempre fresca e boa. Em casa todos os que matam a sede bebem desta caneca. Como num rito todos exclamam: Como é bom beber desta caneca! Como aqui a água é boa! E trata-se da água que, pelos jornais, vem maltratada. Vem do rio imundo da cidade. Cheia de cloro. Mas por causa da caneca torna-se boa, saudável, fresca e doce.
O filho regressa. Percorreu o mundo. Estudou. Chega. Beija a mãe. Abraça os irmãos. Matam-se saudades sofridas. As palavras são poucas. Os olhares longos e minuciosos . É preciso antes, beber o outro para amá-lo. Os olhos que bebem falam a linguagem do coração. Só depois do olhar a boca fala de superficialidades: Como ficas-te gordo! Como é bonito! Como ficou adulto! O olhar não fala nada disso. Ele fala o inefável amor. Só a luz entende. “Mãe, estou com sede! Quero beber da velha caneca!”
E o filho bebeu de tantas águas. As águas da Alemanha, de Inglaterra, da França, a boa água da Grécia. A água das fontes cristalinas dos Alpes, do Tirol. Tantas águas... Mas nenhuma é como essa. Bebe uma caneca. Não para matar a sede do corpo. Esta as outras águas matam. Mas a sede do arquétipo familiar, a sede dos penatos paternos, a sede fraternal, arqueológica, das raízes donde vem a seiva da vida humana. Esta sede só a caneca pode matar. Bebe uma primeira caneca. Sofregamente. Terminou com um suspiro longo, como quem mergulhou e veio à tona. Depois bebe outra. Lentamente. É para degustar o mistério que a caneca contém e significa.
(texto de Leonardo Boff, utilizado no subsídio para a Semana do Estudante 2010, disponível aqui )

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